vazaram-se as luas

As luas vazaram-se refere Mia Couto

“Esvaiu-se o leite num coágulo de saudade…”

Não se esvaiu o leite, mas um coágulo armazenou em mim a saudade, lenta como o “som de um piano vagaroso”(João Pedro Mésseder).
“Coágulo de saudade”. És extraordinário, Mia Couto! Não há melhor metáfora para revelar a intensidade de um sentimento.

Talhadas de luz e sol, daquela substância que molda os pássaros e as luas, os poetas e os pintores, as crianças e os sorrisos assim nasceram as pessoas que são as mãos, o coração a cabeça, os olhos do corpo dos leigos deste ano.
Envergonhadas, escondem, entre sorrisos e olhares, o idealismo, a permanecia, o encontro e a promessa.

Que direi eu, além da paixão que continuo a sentir por África, pelo seu sol de sangue e pelas crianças de sorriso de luz rasgado na pele muito negra.

É triste sair. Mas é uma saída com bilhete de regresso.

Gostava que compreendessem.
Prefiro saber que tenho tudo resolvido para aquando da chegada não me sentir mais perdida do que de certeza ficarei.

E antes de sair deixo-vos um poema de Mia Couto. Muito bonito, sobre Moçambique e a seca que a devastou o ano passado.

Vazaram-se as luas da savana
ossadas pálidas emigraram
dos corpos para o chão
ajoelharam-se os bois
exaustos de carregarem o sol

Escureceram as horas
nomeadas pela fome
extinguiu-se o sangue da terra
esvaiu-se o leitenum coágulo de saudade

Restam troncos
sustentos gemidos
mães oblíquas sonhando migalhas
mendigando crenças
para salvar os filhos já quase terrestres

Quem protege estes meninos
feitos da chuva que não veio?
Que casa lhes havemos de dar?

Amanhã
quando se entornarem os cântaros do céu
as aves voltarão a roçar a lua
e as cigarras de novo espalharão o canto

Mas dos meninos
talhados a golpe de poeira
quantos restarão
para saudar o amanhecer dos frutos?


Mia Couto